Christina
Ramalho
Longo. O título é longo, tal como me parecia o caminho, que se iniciava
na porta de meu apartamento, passava por um elevador preguiçoso, alguns
andares, dois portões de saída do prédio, dois sinais de trânsito e dois
quarteirões, até terminar no balcão da padaria da esquina, de onde surgia a
deliciosa imagem dos pães doces de creme quentinhos, da fornada das quinze
horas.
É impossível esquecer a força aguda e penetrante daquele aroma indefinível,
que tornava minhas tardes especiais, com sabor de calmaria, infância e
aconchego.
Lembro-me de que, ao olhar para o relógio e ver que quinze horas se
aproximavam, nem me lembrava de qualquer resíduo de cansaço. Prontamente
punha-me devidamente vestida para sair à rua, em busca do doce que me
preencheria a tarde. Saía, carregando o dinheirinho amassado no bolso, ansiosa,
por pressentir que logo um diabinho sadomasoquista viria soprar em meus
ouvidos: “Ande, corra...! Vai acabar, vai acabar...!” E eu andava rapidamente,
vencendo as calçadas com determinação e, confesso, com uma espécie de ansiedade
gustativa que me enchia a boca de saliva, antecipando o gosto açucarado que
logo viria.
Metros antes da entrada da padaria, o perfume macio dos pães parecia
indicar o trajeto a ser cumprido. Estavam lá. Prontos para minha fome de
alegria.
Sempre escolhia o mais parrudo, que tivesse o creme mais farto e o
aspecto mais alegre e açucarado. Delicadeza era o que eu esperava do padeiro no
momento em que separasse o pão escolhido dos irmãos de vitrine. Um gesto mais
brusco, e a pinça poderia macular a carne macia do pão doce tão analiticamente
escolhido... De igual modo, vigiava as mãos que envolviam o pão no plástico
protetor e, em seguida, no papel cinza logo agarrado pelo barbante fino. Ai, se
me ferissem o escolhido!
Passava no caixa, deixava o pão vertido em dinheiro e levava o original
para casa. Saía da padaria em ritmo ainda mais acelerado que na ida. Não queria
que o pão esfriasse. E, por isso, mais uma vez longuíssimo se me fazia o tal
caminho. Sentia nas mãos a quentura doce do pacote e um resquício do aroma,
que, instigando-me, lembrava-me do sabor de que logo desfrutaria.
Abria a porta do apartamento e corria para a cozinha. Recordo-me das
tantas vezes em que me deixei cercar pela dúvida: “Dá tempo de colocar o café
no copo que antes guardara geléia ou o pão vai esfriar muito?”. Quase sempre me
decidia pelo café, também saboroso no ex-copo de geléia, que, nunca descobri o
motivo, parecia tornar o café mais café. Desconfio que a falta de cerimônia do
ex-copo de geléia deixava o café à vontade para ser autêntico!
Ah... E como não dizer? Completando o ritual, a faca rompia a unidade
branca da massa cheirosa, e a margarina invadia discreta a harmonia do pão.
Anos mais tarde, nos tempos das vacas menos desnutridas, também haveria a fatia
fina de queijo prato, imprimindo ao conjunto um sabor esplêndido de subúrbio,
fatura e simplicidade saudável.
Morder meu pão doce de creme, quentinho, tendo como cúmplice o café preto
no ex-copo de geléia, era um oásis na tarde esquecida onde se escondiam um
apartamento de subúrbio e uma moça quase simples, não fosse a mania antiga de
fazer poemas.
Às vezes, eu cometia a tolice da gula e comprava dois ou três pães doces
de creme quentinhos. Não me deixou boas lembranças tal tolice, pois,
invariavelmente, a saciedade de medida perfeita era substituída pela sensação
indigesta do excesso. Bom mesmo era o pão doce de creme quentinho e único em
sua justeza quase divina.
Terrível é ter que confessar o quanto me doía, vez por outra, ter que,
por boas maneiras, dar um talho quase generoso numa das extremidades do pão,
porque uma companhia inesperada também se encantara com a magnitude da
guloseima! Deus Meu, quanta avareza! Mas não era a mesma coisa comer o pão
maculado pelo alheio olho guloso...
Um dia, a decepção. A fornada passaria a sair às treze horas. Sandice!
Disse eu. Quem celebraria o pão doce de creme quentinho com o estômago invadido
de almoço? Algo ali se perderia no tempo. E o relógio nunca mais deu quinze
horas com a mesma energia. E o longo caminho ficara brevíssimo, já que se
desfizera o pretexto cremoso para a saída das quinze horas.
Algo, porém, daquela rotina cercada de rituais, cheiros e gostos,
permaneceria na memória de tardes singelíssimas e felizes. Eu ficara repousada
ali, num tempo sem tempo, em que um pão doce de creme quentinho da padaria da
esquina podia ser um pretexto perfeito para que eu alcançasse a sensação de
felicidade. Da hora que se anunciava no relógio ao retorno a casa, acompanhada
pelo embrulho quente, tudo estava cercado de magia, tudo tinha um significado
absolutamente ingênuo, mas absurdamente completo, se penso nos padrões
exigentes com que hoje a sensação de felicidade se apresenta para mim.
Por isso, passo o tempo tentando resgatar meu pão doce de creme quentinho
da padaria da esquina. Vislumbro-o, em outras formas: no abraço carinhoso e
apertado que minha filha mais nova me pede todos os dias; no cheiro no pescoço
com que todas as manhãs acordo minha mais velha; no olhar meigo e cotidiano de
minha gatinha a me esperar acabar de rodar a chave na fechadura; na palavra
amiga e coruja de minha mãe ao telefone perguntando pelas novidades do dia; na
expressão de alegria com que tantas vezes sou recebida nos corredores da
universidade; nos pés protetores que roçam os meus na hora do sono; e em outros
pequenos gestos e coisas que me cercam dia-a-dia, sem que, muitas vezes, sejam
de fato percebidos como merecem.
Talvez resida aí a maior tristeza que a lembrança do pão doce de creme
quentinho da padaria da esquina me traga. Algo dentro de mim se perdeu no
emaranhado do tempo, algo me fez mais insensível àquilo que persiste, vivo e
inteiro, no pão nosso de cada dia que nos é dado em fatias de gestos e sorrisos
e palavras e imagens e gostos e pessoas e tudo mais. Em busca de sabores
refinados, ignoro e até desdenho a dose singela de rotina em minha vida. E
sonho alto, critico tudo e talvez fosse até capaz de ver, numa imagem de pão
doce de creme quentinho que alguém me mostrasse, recalques sexuais, complexos
freudianos, imaturidade psicológica e mil outras relações que minha mente
cansada de ser feliz à moda dos simples constrói cotidianamente para me dar a
ilusão de que cresci.
Não. Nada disso importa. Meu coração diz que o pão doce continua lá,
imaculado e simples como sempre foi. Preciso apenas reaprender a cuidar da
rotina de caminhar ao seu encontro, extraindo de cada passo a alegria que
vestiu meus dias de persistência, ausência de cansaço e doçura.
Eis, assim, a lição do meu pão doce de creme quentinho da padaria da
esquina: resgatar, sempre e persistentemente, os sabores do cotidiano, venham
eles de padarias, escolas, universidades, lares, ruas, escritórios. Venham eles
de qualquer lugar do mundo onde haja gente exercitando a tarefa de viver.
(setembro de 2005)
Publicada no
livro Onze cores da uva (Rio de
Janeiro: OPVS, 2006. RAMALHO, Christina. Org.)
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