De como o Brasil parou num negro domingo
sem fim
Éverton
de Jesus Santos
Por que nada que se escreva agora será capaz de
aclarar, acalmar, devolver o ar? Por que a estupefação é tamanha e o estado de
choque enrijece e petrifica o momento? Por que a vida se torna tão nefasta, e
viver, tão doído? De que forma se abranda um coração dilacerado pela dor,
maculado para sempre pela angústia, marcado pelo ferro-fogo da tragédia? E como
apagar as imagens das quais a mente se impregna e como voltar a ser quem sempre
foi depois que a chama culmina na morte inevitável? As cicatrizes hão de se
apagar, algum dia, completamente?
Houve um incêndio no Brasil. Noticiam os boletins
eletrônicos, os jornais de todo o mundo trazem como manchete de capa o
acontecido que tragou as vidas de centenas de jovens em Santa Maria. E onde a
verdadeira Mãe de Deus estava quando a fumaça tóxica e fatal penetrou em cada
pulmão, quando o fogo queimava corpos, na hora em que pessoas caíam e eram
pisoteadas, ou que, na agonia, tantos confundiram o banheiro com a porta de
saída? Onde estava Deus escondido quando o céu ficou negro e enlutado, quando
as lágrimas acendiam e os gritos eram evocados? Onde fica a fé de cada um
daqueles que, na correria, pensava em sobreviver ou sabe-se lá em que pensavam,
naquele curto instante entre a consciência e a última tragada de ar letal?
Da coragem dos homens que se voluntariaram brotava a
força para perfurar paredes. Da água dos Bombeiros vinha o refrigeramento que
já não bastava. Das mensagens que ainda podiam ser enviadas vinham os pedidos
de socorro, o adeus, o eu te amo último como cada segundo em contagem
regressiva. Dos gritos de lamúria e de desespero, meu Deus, quem poderia alguma
coisa fazer? Quem, entre aqueles que se espremiam e tentavam se manter em pé
rumo à saída, quem, eu pergunto, haveria de salvar ao próximo antes de salvar a
si mesmo? Quantos heróis ali dentro morreram, quantos saíram e depois voltaram
por lembrar que algo precioso dali não havia saído?
E a angústia intraduzível de ver cada corpo ser
retirado daquele inferno, arrastado até a rua, agonizando, desmaiado, ou já
tendo entregado o espírito poucos minutos atrás... As narinas queimadas por
dentro, as gargantas secas, o oxigênio outrora inodoro, incolor e vital que
transgride as normas estabelecidas pela Vigilância Sanitária e se torna um
Cavaleiro do Apocalipse em terra com nome santo. Rapidamente, os corpos se
amontoam, viram pilhas montanhosas de metros, cada qual contribuindo para que
seu nome figurasse numa lista negra tal qual aquele Beijo.
O corre-corre na rua, o sobe-e-desce das polícias,
dos bombeiros, dos paramédicos, dos enfermeiros, dos vizinhos, dos curiosos,
dos sobreviventes, dos familiares. O choro incontível, o assombro em cada
olhar, os telefones em cada ouvido, os relatos de como tudo começou a
desmoronar. Muitos são os que põem a camisa no rosto, na esperança de
contribuir para a existência do milagre. Muitos são os que pegam seus baldes,
ligam interminavelmente suas torneiras, empunham as mangueiras e tentam
rescaldar as paredes do espaço de festas. O sofrimento de uns já é de todos.
Não há mais quem não tenha perdido alguém naquela tragédia de pesadelos.
A rua fica pequena, tomada por corpos, por feridos, por
desacordados, ou por voluntários. Quem não era médico se prontificava a fazer
até massagem cardíaca, tentando reanimar quem já tinha embarcado. Outros faziam
da camisa ventilador, na ânsia de fazer o ar puro chegar de forma mais eficaz
aos pulmões, aos alvéolos, às células pequeninotas e já enegrecidas,
gangrenadas. Tudo ali é terror, nada ali faz sorrir, nem mesmo aos que sobreviveram,
escapando da ceifadura.
Faz-se turva a manhã. O número oficial de mortos é
atualizado a cada instante e nunca decresce. Nos banheiros foram encontrados
cerca de cento e oitenta corpos, num curto espaço de local. Na porta de entrada
e saída, a mesma, outros tantos que se lançaram à luta, buscando a luz no fim
do escuro túnel sem iluminação e de fumaça densa, capaz de cegar e de
entorpecer física e psicologicamente. Outros morreram sabe-se lá onde. Talvez
perto do palco, ou, quem sabe, no barzinho, na pista de dança ou até, como testemunharam,
com a cabeça enfiada no vaso sanitário.
O Instituto Médico Legal, acostumado com a pequena
demanda para aquela população de quase trezentas mil pessoas da pacata cidade
flutuante, não tem capacidade para receber tantos corpos. Então, a tarefa das
Forças Armadas é colocá-los nos caminhões-baú, refrigerados, e descarregá-los
no pátio do Ginásio Municipal. Vejo a cena: corpos e mais corpos, sãos e
sadios, jovens e cheios de vida, mas agora sem ela, tão prematuramente.
Carnificina exposta ao sofrimento de toda uma cidade que agora tem que
reconhecer cada morto familiar. A missão é resistir de pé e passar por cada um,
tentando levar o seu para a embalagem no caixão, com dignidade. Os pais e
irmãos choram. Muitos são os que, mesmo com o respaldo dos psicólogos,
dispensam a missão e alegam a fraqueza. Cada um traz consigo a marca da perda,
o véu da dor perpassando cada olhar avermelhado e vago, longe dali. A ficha
ainda não caiu, e cada oração silenciosa pede que o sonho mau simplesmente
acabe e que a vida volte, enfim, ao normal. Mas isso jamais vai acontecer.
É a mãe padecente que reconhece os quatro filhos. É
o bombeiro que, após as cento e quatro ligações de uma mãe, atende o celular e
diz: “mãe, o celular está comigo, mas o seu filho está com Deus”. São os muitos
celulares tocando em cada bolso, sem ter quem os atenda, sem obter o alô mais
esperado de toda a vida. É a mãe que brigou com a filha, proibindo-a de ir para
a festa e recebendo um “eu te odeio” na cara e que depois foi atingida pela
lamentável notícia de que a filha está entre os mortos. É o casal de namorados
que morreu abraçado. Ou o cara que postou, na sua rede social, que tinha
brigado com a namorada e ela foi para a boate, mas não saiu de lá com vida, e,
portanto, não haverá reconciliação. E há ainda a namorada que recebeu a última
mensagem do namorado dizendo: “amor, estou morrendo, mas eu amo você”. Ademais, há a mulher que perdeu o marido há
dois anos, a mãe a menos de três meses, e teve que enterrar um filho enquanto o
outro estava entubado em estado grave na capital. Há a outra mãe que trabalhava
na boate e que, naquele dia, não pôde ir e, por isso, mandou a filha no seu
lugar. Ela foi uma das vítimas. Há o caso da moça, também funcionária, que postou:
“Socorro, incêndio na Kiss”. Responderam: “Me dá mais informações”, mas ela não
mais podia esclarecer nada para ninguém. Naquela madrugada, o dia não clareou.
Quantas outras histórias há e haverão para serem reveladas e divulgadas?
Culpa dos seguranças que pensaram se tratar de briga
lá dentro e quiseram receber, primeiramente, a comanda dos que tentavam sair.
Culpa dos donos do estabelecimento que não ajustaram a boate de acordo com as
normas previstas pela lei. Culpa dos músicos que tentaram fazer um showzinho
pirotécnico, como era habitual, e provocaram uma calamidade devastadora. Culpa
dos extintores que não corresponderam à expectativa e deixaram a multidão
entregue ao próprio azar. Culpa dos inadvertidos jovens que superlotaram a
boate num final de semana normal a fim de fazer uma “agromeração” e curtir uma
festinha, saindo assim da rotina universitária.
Quem, quem tem a culpa? Vamos apurar os culpados e
os inocentes, distribuir punições, sentenças, instituir valores por cada uma
das vidas perdidas ou hospitalizadas, pelos futuros interrompidos. Vamos ser
rigorosos com a segurança dos nossos filhos, exigindo mudanças nas leis. Vamos
chorar sobre os caixões enfileirados no Ginásio Municipal. Vamos agora
vivenciar um luto de sete ou de trinta dias, à espera de que os ânimos se
acalmem! Hasteemos a bandeira a meio mastro, em sinal de condolência, de pesar.
Vamos silenciar o pranto e abraçar a emocionada Senhora Presidenta, o Senhor
Governador, o Ministro da Saúde e também o Prefeito.
E agora, somos metralhados por uma avassaladora
correnteza de informações em tempo real, atualizadas frequentemente. O número
de feridos, o de mortos, quantos estão em estado grave, quantos serão
transferidos. Somos jogados para dentro do velório comunitário, dos enterros a
cada vinte minutos, do reconhecimento de cada corpo ou do traslado dos que
morreram longe de onde nasceram. As mesmas imagens são repetidas em todos os
canais, os nomes e rostos de cada falecido são revelados, os sentimentos brotam
de cada olheira dos repórteres, das faces assustadas e perplexas dos que estão
no centro do repentino furacão quente sulista.
Há a imprensa brasileira. E há os que trabalham na
tragédia ajudando no necessário para segurar as rédeas do cavalo solto que
anuncia a penitência e que traz, a largos galopes, a espada de dor que
trespassa cada alma. Há os que doam sangue e os hospitais que cedem tecidos
humanos e pessoal especializado. Há os que distribuem palavras de afago,
abraços e um olhar de conforto, e os que levam comida e água para os que ainda
permanecem sem dormir, sem comer, sem tornar a si. Há os que oferecem dormida,
transporte, local para banho, os que deixam a solidariedade falar tão alto
quanto a dor pode gritar. E, em meio ao brutal luto, faz-se necessário refletir
sobre quem são os que se vão e os que ficam, e sobre como é fugaz e efêmera a
vida humana.
Diante da tragédia, Santa Maria vira centro. Todos
os olhares e pensamentos se voltam para a cidade, a qual não é mais Rio Grande
do Sul, mas Brasil. Enterramos vidas, consumidas de forma tão inexplicável de
um ponto de vista racional e menos fisiológico. Eles não morreram. Ainda vivem
em cada um dos que perpetuarão as memórias deles quando viviam, de quando a
existência neles pulsava. Quanta vida pela frente e obstacularizadas assim, de
repente, sem que se tivesse havido tempo para falar ao invés de gritar; de
dançar ao invés de correr para encontrar a saída; de viver, antes que a morte
os carregasse nessa viagem tão funesta.
Das palavras, diz-se apenas que não conseguem
expressar nem o início do que é sentido. Do que se diz ao pé do ouvido, dos “eu
sinto muito”, “meus pêsames” ou “minhas condolências”, nada aplaca o frio que percorre
desde o corpo dos que são reconhecidos, velados e enterrados até os que ainda
peregrinam. Nada leva saúde aos que respiram com ajuda de aparelhos ou que
passam pela cirurgia de transplante de pele ou pela transfusão de sangue. Por
que, em meio ao caos generalizado, por que, quando o assunto é a morte, palavra
alguma serve para revigorar? Será que é porque, depois que a morte vem e leva,
nada mais há que a faça devolver quem ela raptou?
De quem vai ser a culpa, ao fim do inquérito, ao fim
do julgamento? Quem vai reverter a situação após a apuração das causas do
incidente? Quem vai dizer que estava nos desígnios de Deus ou que não havia
intenção de provocar esse transtorno? Quem, como e por que são agora perguntas
que, embora não sirvam para amenizar o sofrimento de ninguém devido à chama que
devasta tantas almas, servirão, futuramente, para responsabilizar quem de
direito e combater irregularidades em outros estabelecimentos. Servirá,
sobretudo, para que outra ocorrência desse tipo não volte a acontecer, pois,
somente quem agora padece de consternação ou quem agora se compadece em
tristeza tem a dimensão do que é estar diante de uma fatalidade desse porte. Se
é que isso é real.
Enfim, da nossa parte, da parte de quem assiste e
vivencia, resta rezar, pedir, ajudar, se sensibilizar, lamentar, entrar na
batalha por mudanças na legislação, aguardar na justiça terrena e divina.
Chorar os vivos e os mortos, as família destruídas e unidas, os que vão e os
que ficam e, principalmente, olhar pelos que ficam e que, inevitavelmente, se
vão com quem se foi.
Boa, Éverton..........
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