terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Texto de Éverton Santos sobre a tragédia em Santa Maria - RS



De como o Brasil parou num negro domingo sem fim

Éverton de Jesus Santos

Por que nada que se escreva agora será capaz de aclarar, acalmar, devolver o ar? Por que a estupefação é tamanha e o estado de choque enrijece e petrifica o momento? Por que a vida se torna tão nefasta, e viver, tão doído? De que forma se abranda um coração dilacerado pela dor, maculado para sempre pela angústia, marcado pelo ferro-fogo da tragédia? E como apagar as imagens das quais a mente se impregna e como voltar a ser quem sempre foi depois que a chama culmina na morte inevitável? As cicatrizes hão de se apagar, algum dia, completamente?
Houve um incêndio no Brasil. Noticiam os boletins eletrônicos, os jornais de todo o mundo trazem como manchete de capa o acontecido que tragou as vidas de centenas de jovens em Santa Maria. E onde a verdadeira Mãe de Deus estava quando a fumaça tóxica e fatal penetrou em cada pulmão, quando o fogo queimava corpos, na hora em que pessoas caíam e eram pisoteadas, ou que, na agonia, tantos confundiram o banheiro com a porta de saída? Onde estava Deus escondido quando o céu ficou negro e enlutado, quando as lágrimas acendiam e os gritos eram evocados? Onde fica a fé de cada um daqueles que, na correria, pensava em sobreviver ou sabe-se lá em que pensavam, naquele curto instante entre a consciência e a última tragada de ar letal?
Da coragem dos homens que se voluntariaram brotava a força para perfurar paredes. Da água dos Bombeiros vinha o refrigeramento que já não bastava. Das mensagens que ainda podiam ser enviadas vinham os pedidos de socorro, o adeus, o eu te amo último como cada segundo em contagem regressiva. Dos gritos de lamúria e de desespero, meu Deus, quem poderia alguma coisa fazer? Quem, entre aqueles que se espremiam e tentavam se manter em pé rumo à saída, quem, eu pergunto, haveria de salvar ao próximo antes de salvar a si mesmo? Quantos heróis ali dentro morreram, quantos saíram e depois voltaram por lembrar que algo precioso dali não havia saído?
E a angústia intraduzível de ver cada corpo ser retirado daquele inferno, arrastado até a rua, agonizando, desmaiado, ou já tendo entregado o espírito poucos minutos atrás... As narinas queimadas por dentro, as gargantas secas, o oxigênio outrora inodoro, incolor e vital que transgride as normas estabelecidas pela Vigilância Sanitária e se torna um Cavaleiro do Apocalipse em terra com nome santo. Rapidamente, os corpos se amontoam, viram pilhas montanhosas de metros, cada qual contribuindo para que seu nome figurasse numa lista negra tal qual aquele Beijo.
O corre-corre na rua, o sobe-e-desce das polícias, dos bombeiros, dos paramédicos, dos enfermeiros, dos vizinhos, dos curiosos, dos sobreviventes, dos familiares. O choro incontível, o assombro em cada olhar, os telefones em cada ouvido, os relatos de como tudo começou a desmoronar. Muitos são os que põem a camisa no rosto, na esperança de contribuir para a existência do milagre. Muitos são os que pegam seus baldes, ligam interminavelmente suas torneiras, empunham as mangueiras e tentam rescaldar as paredes do espaço de festas. O sofrimento de uns já é de todos. Não há mais quem não tenha perdido alguém naquela tragédia de pesadelos.
A rua fica pequena, tomada por corpos, por feridos, por desacordados, ou por voluntários. Quem não era médico se prontificava a fazer até massagem cardíaca, tentando reanimar quem já tinha embarcado. Outros faziam da camisa ventilador, na ânsia de fazer o ar puro chegar de forma mais eficaz aos pulmões, aos alvéolos, às células pequeninotas e já enegrecidas, gangrenadas. Tudo ali é terror, nada ali faz sorrir, nem mesmo aos que sobreviveram, escapando da ceifadura.
Faz-se turva a manhã. O número oficial de mortos é atualizado a cada instante e nunca decresce. Nos banheiros foram encontrados cerca de cento e oitenta corpos, num curto espaço de local. Na porta de entrada e saída, a mesma, outros tantos que se lançaram à luta, buscando a luz no fim do escuro túnel sem iluminação e de fumaça densa, capaz de cegar e de entorpecer física e psicologicamente. Outros morreram sabe-se lá onde. Talvez perto do palco, ou, quem sabe, no barzinho, na pista de dança ou até, como testemunharam, com a cabeça enfiada no vaso sanitário.
O Instituto Médico Legal, acostumado com a pequena demanda para aquela população de quase trezentas mil pessoas da pacata cidade flutuante, não tem capacidade para receber tantos corpos. Então, a tarefa das Forças Armadas é colocá-los nos caminhões-baú, refrigerados, e descarregá-los no pátio do Ginásio Municipal. Vejo a cena: corpos e mais corpos, sãos e sadios, jovens e cheios de vida, mas agora sem ela, tão prematuramente. Carnificina exposta ao sofrimento de toda uma cidade que agora tem que reconhecer cada morto familiar. A missão é resistir de pé e passar por cada um, tentando levar o seu para a embalagem no caixão, com dignidade. Os pais e irmãos choram. Muitos são os que, mesmo com o respaldo dos psicólogos, dispensam a missão e alegam a fraqueza. Cada um traz consigo a marca da perda, o véu da dor perpassando cada olhar avermelhado e vago, longe dali. A ficha ainda não caiu, e cada oração silenciosa pede que o sonho mau simplesmente acabe e que a vida volte, enfim, ao normal. Mas isso jamais vai acontecer.
É a mãe padecente que reconhece os quatro filhos. É o bombeiro que, após as cento e quatro ligações de uma mãe, atende o celular e diz: “mãe, o celular está comigo, mas o seu filho está com Deus”. São os muitos celulares tocando em cada bolso, sem ter quem os atenda, sem obter o alô mais esperado de toda a vida. É a mãe que brigou com a filha, proibindo-a de ir para a festa e recebendo um “eu te odeio” na cara e que depois foi atingida pela lamentável notícia de que a filha está entre os mortos. É o casal de namorados que morreu abraçado. Ou o cara que postou, na sua rede social, que tinha brigado com a namorada e ela foi para a boate, mas não saiu de lá com vida, e, portanto, não haverá reconciliação. E há ainda a namorada que recebeu a última mensagem do namorado dizendo: “amor, estou morrendo, mas eu amo você”.  Ademais, há a mulher que perdeu o marido há dois anos, a mãe a menos de três meses, e teve que enterrar um filho enquanto o outro estava entubado em estado grave na capital. Há a outra mãe que trabalhava na boate e que, naquele dia, não pôde ir e, por isso, mandou a filha no seu lugar. Ela foi uma das vítimas. Há o caso da moça, também funcionária, que postou: “Socorro, incêndio na Kiss”. Responderam: “Me dá mais informações”, mas ela não mais podia esclarecer nada para ninguém. Naquela madrugada, o dia não clareou. Quantas outras histórias há e haverão para serem reveladas e divulgadas?
Culpa dos seguranças que pensaram se tratar de briga lá dentro e quiseram receber, primeiramente, a comanda dos que tentavam sair. Culpa dos donos do estabelecimento que não ajustaram a boate de acordo com as normas previstas pela lei. Culpa dos músicos que tentaram fazer um showzinho pirotécnico, como era habitual, e provocaram uma calamidade devastadora. Culpa dos extintores que não corresponderam à expectativa e deixaram a multidão entregue ao próprio azar. Culpa dos inadvertidos jovens que superlotaram a boate num final de semana normal a fim de fazer uma “agromeração” e curtir uma festinha, saindo assim da rotina universitária.
Quem, quem tem a culpa? Vamos apurar os culpados e os inocentes, distribuir punições, sentenças, instituir valores por cada uma das vidas perdidas ou hospitalizadas, pelos futuros interrompidos. Vamos ser rigorosos com a segurança dos nossos filhos, exigindo mudanças nas leis. Vamos chorar sobre os caixões enfileirados no Ginásio Municipal. Vamos agora vivenciar um luto de sete ou de trinta dias, à espera de que os ânimos se acalmem! Hasteemos a bandeira a meio mastro, em sinal de condolência, de pesar. Vamos silenciar o pranto e abraçar a emocionada Senhora Presidenta, o Senhor Governador, o Ministro da Saúde e também o Prefeito.
E agora, somos metralhados por uma avassaladora correnteza de informações em tempo real, atualizadas frequentemente. O número de feridos, o de mortos, quantos estão em estado grave, quantos serão transferidos. Somos jogados para dentro do velório comunitário, dos enterros a cada vinte minutos, do reconhecimento de cada corpo ou do traslado dos que morreram longe de onde nasceram. As mesmas imagens são repetidas em todos os canais, os nomes e rostos de cada falecido são revelados, os sentimentos brotam de cada olheira dos repórteres, das faces assustadas e perplexas dos que estão no centro do repentino furacão quente sulista.
Há a imprensa brasileira. E há os que trabalham na tragédia ajudando no necessário para segurar as rédeas do cavalo solto que anuncia a penitência e que traz, a largos galopes, a espada de dor que trespassa cada alma. Há os que doam sangue e os hospitais que cedem tecidos humanos e pessoal especializado. Há os que distribuem palavras de afago, abraços e um olhar de conforto, e os que levam comida e água para os que ainda permanecem sem dormir, sem comer, sem tornar a si. Há os que oferecem dormida, transporte, local para banho, os que deixam a solidariedade falar tão alto quanto a dor pode gritar. E, em meio ao brutal luto, faz-se necessário refletir sobre quem são os que se vão e os que ficam, e sobre como é fugaz e efêmera a vida humana.
Diante da tragédia, Santa Maria vira centro. Todos os olhares e pensamentos se voltam para a cidade, a qual não é mais Rio Grande do Sul, mas Brasil. Enterramos vidas, consumidas de forma tão inexplicável de um ponto de vista racional e menos fisiológico. Eles não morreram. Ainda vivem em cada um dos que perpetuarão as memórias deles quando viviam, de quando a existência neles pulsava. Quanta vida pela frente e obstacularizadas assim, de repente, sem que se tivesse havido tempo para falar ao invés de gritar; de dançar ao invés de correr para encontrar a saída; de viver, antes que a morte os carregasse nessa viagem tão funesta.
Das palavras, diz-se apenas que não conseguem expressar nem o início do que é sentido. Do que se diz ao pé do ouvido, dos “eu sinto muito”, “meus pêsames” ou “minhas condolências”, nada aplaca o frio que percorre desde o corpo dos que são reconhecidos, velados e enterrados até os que ainda peregrinam. Nada leva saúde aos que respiram com ajuda de aparelhos ou que passam pela cirurgia de transplante de pele ou pela transfusão de sangue. Por que, em meio ao caos generalizado, por que, quando o assunto é a morte, palavra alguma serve para revigorar? Será que é porque, depois que a morte vem e leva, nada mais há que a faça devolver quem ela raptou?
De quem vai ser a culpa, ao fim do inquérito, ao fim do julgamento? Quem vai reverter a situação após a apuração das causas do incidente? Quem vai dizer que estava nos desígnios de Deus ou que não havia intenção de provocar esse transtorno? Quem, como e por que são agora perguntas que, embora não sirvam para amenizar o sofrimento de ninguém devido à chama que devasta tantas almas, servirão, futuramente, para responsabilizar quem de direito e combater irregularidades em outros estabelecimentos. Servirá, sobretudo, para que outra ocorrência desse tipo não volte a acontecer, pois, somente quem agora padece de consternação ou quem agora se compadece em tristeza tem a dimensão do que é estar diante de uma fatalidade desse porte. Se é que isso é real.
Enfim, da nossa parte, da parte de quem assiste e vivencia, resta rezar, pedir, ajudar, se sensibilizar, lamentar, entrar na batalha por mudanças na legislação, aguardar na justiça terrena e divina. Chorar os vivos e os mortos, as família destruídas e unidas, os que vão e os que ficam e, principalmente, olhar pelos que ficam e que, inevitavelmente, se vão com quem se foi.

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