segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Meu king-kong predileto ou Há olhos sob as telhas - Christina Ramalho



Meu king-kong predileto nasceu por volta dos anos 80, num final de tarde, na Tijuca. É, pois, um king-kong carioquíssimo. E, como tal, não poderia deixar de ser uma mistura de graça com irreverência e muita ironia! Cultivo-o na memória como uma lição de vida preciosa. E, embora saiba que, revelando-o, entrego-me ao cadafalso, eis sua história:
Fui estudante da Faculdade de Arquitetura da UFRJ. Nessa época, morava na casa de meus padrinhos, na Tijuca, e, por isso, era passageira constante do ônibus  634 – Praça Saens Pena/Dendê, o único que me levava à ilha do Fundão. De manhã, bem cedinho, inaugurava a fila do ponto final e, à tarde, descia do ônibus no mesmo ponto de onde partira. No vai-e-vem casa/faculdade, costumava fazer da janela tela para os pensamentos, e tudo o que via transformava-se de repente ora em lembranças ora em sonhos.
Essa mania de brincar com as cenas do cotidiano e fazer das pessoas, animais, carros e construções modelos para meus devaneios foi reforçada por uma interessante aula sobre telhados na faculdade de arquitetura. A partir das palavras do professor, pude perceber que, apesar do meu hábito de observar o mundo à minha volta, jamais me dera conta do universo vermelho, cinza e pontiagudo dos telhados da cidade. Saí da aula ansiando pela oportunidade de rever minha paisagem e descobrir segredos desconhecidos.
 Sentei-me no primeiro banco do ônibus do velho 634, e, voltando para casa, passei a observar os inúmeros e diversos tipos de telhados que nossa cidade apresenta aos olhos dos interessados no assunto. Incrível perceber que até então nada disso tinha sido observado. Redescobri a cidade. Telhas francesas, telhas canais, telhas de amianto, telhas coloridas, telhados de duas, quatro águas... A luz do sol escondia-se discretamente, entre prédios altos, árvores e montanhas, mas, vez por outra, era possível observar o contraste entre o alaranjado que se esparramava pelo céu e as pontas triangulares dos telhados. Pude vislumbrar mãos em oração buscando o céu. Era lindo.
De repente, ao olhar para o lado do motorista, dei com o mesmo me olhando de forma acintosa. Estava sendo descaradamente paquerada. Eu, tão inocente, a devanear entre as cumeeiras e rosas-de-vento! Quem dava àquele sujeito o direito de invadir a privacidade de meus pensamentos obrigando-me a pensar nele? Quem lhe dava o direito de me olhar com aqueles olhos apertados, prontos para uma piscadela oferecida? Aborrecida, maquiei na face a mais perfeita máscara de desprezo, olhei em seus olhos atrevidos e virei, solene, meu rosto em direção à minha sedutora amiga, a janela.
Qual não foi minha surpresa ao constatar que, entretida com os telhados da cidade, não percebi a chegada ao ponto final e o decorrente desembarque de todos os passageiros!!
O pobre do motorista, esnobado como havia sido, ainda teve a gentileza de me sorrir, embora, por dentro, devesse estar gargalhando sem parar... Creio ter-lhe oferecido, então, o sorriso mais amarelo do mundo. Arqueei as sobrancelhas num misto de vergonha e pedido de perdão, peguei o recém-nascido king-kong no colo e saí de fininho, porta afora, incrédula.
Sob as telhas da Tijuca, olhos abstratos me olhavam. Pude sentir, pela primeira vez, que eu fazia parte do espetáculo da vida. Ninguém assistira a meu ridículo, mas eu sabia: o mundo é espectador e meu ridículo invadirá as vertigens tempo e eu serei sempre a protagonista dessa comédia.
 Quase vinte anos depois, volto-lhe em palavras, meu caro motorista: desculpe-me o gesto áspero, o pensamento preconceituoso e, principalmente, a expressão de superioridade. King-kongs costumam ser assim. Chegam para arrasar. No meu caso, quase não sobraram pernas para carregar meu corpo envergonhado ônibus afora.

(crônica publicada no livro Colheita de uvas, 2002)

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