Fui estudante
da Faculdade de Arquitetura
da UFRJ. Nessa época , morava na casa
de meus padrinhos ,
na Tijuca , e, por
isso , era
passageira constante
do ônibus 634
– Praça Saens Pena /Dendê , o único que me levava à
ilha do Fundão .
De manhã , bem
cedinho, inaugurava a fila do ponto final e, à tarde , descia do ônibus no mesmo ponto de onde partira. No vai-e-vem casa /faculdade , costumava fazer da janela tela para os pensamentos, e tudo
o que via
transformava-se de repente ora em lembranças ora em sonhos .
Essa mania
de brincar com
as cenas do cotidiano
e fazer das pessoas ,
animais , carros
e construções modelos
para meus devaneios foi reforçada por
uma interessante aula sobre telhados
na faculdade de arquitetura .
A partir das palavras
do professor , pude perceber
que , apesar
do meu hábito
de observar o mundo
à minha volta ,
jamais me
dera conta do universo
vermelho , cinza
e pontiagudo dos telhados
da cidade . Saí da aula
já ansiando pela
oportunidade de rever
minha paisagem
e descobrir segredos
desconhecidos .
Sentei-me no primeiro
banco do ônibus
do velho 634, e, voltando para
casa , passei a observar
os inúmeros e diversos tipos de telhados
que nossa
cidade apresenta aos olhos dos interessados no assunto .
Incrível perceber
que até
então nada
disso tinha sido observado .
Redescobri a cidade . Telhas francesas, telhas
canais , telhas
de amianto , telhas
coloridas, telhados de duas, quatro águas ...
A luz do sol
escondia-se discretamente , entre prédios altos , árvores
e montanhas , mas ,
vez por
outra , era
possível observar
o contraste entre
o alaranjado que
se esparramava pelo céu
e as pontas triangulares
dos telhados . Pude vislumbrar
mãos em
oração buscando o céu .
Era lindo .
De repente ,
ao olhar para o lado do motorista ,
dei com o mesmo
me olhando de forma
acintosa. Estava sendo descaradamente
paquerada. Eu , tão
inocente , a devanear
entre as cumeeiras
e rosas-de-vento! Quem dava àquele sujeito o direito de invadir a privacidade de meus pensamentos obrigando-me a pensar
nele? Quem lhe
dava o direito de me
olhar com aqueles olhos apertados , prontos
para uma piscadela
oferecida? Aborrecida , maquiei na face a
mais perfeita
máscara de desprezo ,
olhei em seus
olhos atrevidos
e virei, solene , meu
rosto em
direção à minha
sedutora amiga , a janela .
O pobre
do motorista , esnobado como havia sido, ainda
teve a gentileza de me
sorrir , embora ,
por dentro ,
devesse estar gargalhando sem
parar ... Creio ter-lhe oferecido, então , o sorriso
mais amarelo
do mundo . Arqueei as sobrancelhas num misto
de vergonha e pedido
de perdão , peguei o recém-nascido king-kong no colo
e saí de fininho, porta afora , incrédula .
(crônica publicada no livro Colheita de uvas, 2002)
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