Meu king-kong predileto
nasceu por volta
dos anos 80, num final
de tarde, na Tijuca.
É, pois, um
king-kong carioquíssimo. E, como tal, não poderia deixar de ser uma mistura de graça com irreverência e muita ironia! Cultivo-o na memória
como uma lição
de vida preciosa.
E, embora saiba
que, revelando-o, entrego-me ao cadafalso, eis sua história:
Fui estudante
da Faculdade de Arquitetura
da UFRJ. Nessa época, morava na casa
de meus padrinhos,
na Tijuca, e, por
isso, era
passageira constante
do ônibus 634
– Praça Saens Pena/Dendê, o único que me levava à
ilha do Fundão.
De manhã, bem
cedinho, inaugurava a fila do ponto final e, à tarde, descia do ônibus no mesmo ponto de onde partira. No vai-e-vem casa/faculdade, costumava fazer da janela tela para os pensamentos, e tudo
o que via
transformava-se de repente ora em lembranças ora em sonhos.
Essa mania
de brincar com
as cenas do cotidiano
e fazer das pessoas,
animais, carros
e construções modelos
para meus devaneios foi reforçada por
uma interessante aula sobre telhados
na faculdade de arquitetura.
A partir das palavras
do professor, pude perceber
que, apesar
do meu hábito
de observar o mundo
à minha volta,
jamais me
dera conta do universo
vermelho, cinza
e pontiagudo dos telhados
da cidade. Saí da aula
já ansiando pela
oportunidade de rever
minha paisagem
e descobrir segredos
desconhecidos.
Sentei-me no primeiro
banco do ônibus
do velho 634, e, voltando para
casa, passei a observar
os inúmeros e diversos tipos de telhados
que nossa
cidade apresenta aos olhos dos interessados no assunto.
Incrível perceber
que até
então nada
disso tinha sido observado.
Redescobri a cidade. Telhas francesas, telhas
canais, telhas
de amianto, telhas
coloridas, telhados de duas, quatro águas...
A luz do sol
escondia-se discretamente, entre prédios altos, árvores
e montanhas, mas,
vez por
outra, era
possível observar
o contraste entre
o alaranjado que
se esparramava pelo céu
e as pontas triangulares
dos telhados. Pude vislumbrar
mãos em
oração buscando o céu.
Era lindo.
De repente,
ao olhar para o lado do motorista,
dei com o mesmo
me olhando de forma
acintosa. Estava sendo descaradamente
paquerada. Eu, tão
inocente, a devanear
entre as cumeeiras
e rosas-de-vento! Quem dava àquele sujeito o direito de invadir a privacidade de meus pensamentos obrigando-me a pensar
nele? Quem lhe
dava o direito de me
olhar com aqueles olhos apertados, prontos
para uma piscadela
oferecida? Aborrecida, maquiei na face a
mais perfeita
máscara de desprezo,
olhei em seus
olhos atrevidos
e virei, solene, meu
rosto em
direção à minha
sedutora amiga, a janela.
Qual não
foi minha surpresa
ao constatar que,
entretida com os telhados
da cidade, não
percebi a chegada ao ponto
final e o decorrente desembarque de todos
os passageiros!!
O pobre
do motorista, esnobado como havia sido, ainda
teve a gentileza de me
sorrir, embora,
por dentro,
devesse estar gargalhando sem
parar... Creio ter-lhe oferecido, então, o sorriso
mais amarelo
do mundo. Arqueei as sobrancelhas num misto
de vergonha e pedido
de perdão, peguei o recém-nascido king-kong no colo
e saí de fininho, porta afora, incrédula.
Sob as telhas
da Tijuca, olhos
abstratos me
olhavam. Pude sentir, pela
primeira vez,
que eu
fazia parte do espetáculo
da vida. Ninguém
assistira a meu ridículo,
mas eu
sabia: o mundo é espectador
e meu ridículo
invadirá as vertigens tempo e eu
serei sempre a protagonista
dessa comédia.
Quase
vinte anos depois,
volto-lhe em palavras,
meu caro
motorista: desculpe-me o gesto áspero, o pensamento preconceituoso
e, principalmente, a expressão de superioridade.
King-kongs costumam ser assim.
Chegam para arrasar. No meu caso, quase não
sobraram pernas para
carregar meu corpo envergonhado ônibus afora.
(crônica publicada no livro Colheita de uvas, 2002)
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